O Brasil na África, a África no Brasil
Há algum tempo, desde o ano passado pelo menos, venho observando que, tanto nos jornais e revistas quanto na televisão, muitas notícias sobre a África vêm sendo veiculadas. São artigos e reportagens que procuram ressaltar os laços que unem o Brasil ao continente africano, especificamente aos países africanos de língua portuguesa, e especialmente a Angola e Moçambique. E isso é ótimo porque contribui para a dissolução daquela terrível e antiga idéia de que a África é feita de elefantes, leões e tribos primitivas.
Do ponto de vista cultural, o intercâmbio entre o Brasil e a África torna possível, e cada vez mais freqüente, o encontro entre nós, brasileiros, e africanos como Mia Couto e Ondjaki, dois escritores conceituados que certamente têm muito a compartilhar. Eventos como a FLIP, que nesse ano (2009) pôde contar também com a presença de Alberto da Costa e Silva, um dos maiores especialistas brasileiros em assuntos africanos, têm demonstrado preocupação em estreitar as relações entre o Brasil e o continente africano. Outro exemplo é o FESTLIP, festival de teatro de países de língua portuguesa que, em sua segunda edição (2009), trouxe ao Rio de Janeiro 80 profissionais de teatro de Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau e Portugal para onze dias de espetáculo. Do outro lado do oceano, a Casa de Cultura Brasil-Angola, em Luanda, desenvolveu esse ano o projeto “Sopa de Letrinhas”, que teve como objetivo apresentar a literatura infantil brasileira ao público angolano.
Não é tão difícil perceber um certo empenho de ambas as partes em restabelecer o contato enfraquecido passado o período da escravidão. Agora num contexto positivo, em que nenhum país planeja devastar o outro para se estabelecer, o momento é de cooperação. Que Angola e Moçambique são países em fase de desenvolvimento econômico e de reestruturação social, sabemos (o Brasil não é muito diferente). Como resultado de décadas de devastação por conta da colonização portuguesa, esses países enfrentam hoje um complexo processo que visa à reconstrução da nação. Desde o início do século XIX, quando ainda se encontravam sob o domínio português, observa-se, contudo, um crescente desejo de desvelamento daquele substrato africano perdido devido à imposição da cultura do colonizador. Nesse sentido, a literatura, tanto em Angola como em Moçambique, ocupou papel central como impulsionador dos movimentos pró-independência e como responsável pelo resgate das tradições culturais desses países.
Muitos autores que hoje têm suas obras circulando pelas livrarias brasileiras, como Mia Couto, Pepetela e Luandino Vieira, por exemplo, fazem parte de uma geração cheia de ideais, que lutou, através das palavras, pela independência de seus países. No entanto, depois de conquistada, a independência evidenciou muitos contrastes, criou novos problemas e revelou que o processo de reconstrução do país seria mais difícil do que se imaginava. Em sua ficção, esses autores procurar compartilhar essas dificuldades e as utopias que nortearam seus países durante muitos anos.
Menos conhecida por aqui, mas tão essencial quanto, é a obra de Boaventura Cardoso. Conterrâneo de Pepetela e nascido na mesma década deste, em 1944, o escritor participou dos movimentos pela libertação de Angola, além de ter sido membro-fundador da União dos Escritores Angolanos (UEA), responsável pela publicação de textos de escritores angolanos após a independência, em 1975. Desde então, teve seis livros publicados: Dizanga dia Muenhu (1977), O Fogo da Fala (1978), A Morte do Velho Kipacaça (1987), O Signo do Fogo (1992), Maio, Mês de Maria (1997), Mãe, Materno Mar (2001).
Autor de contos e romances de peso, Boaventura Cardoso, que também ocupou o cargo Ministro da Cultura de Angola de 2002 a 2008, inscreve-se no hall dos mais representativos escritores daquele país. Tem muitas passagens pelo Rio de Janeiro, onde costuma contribuir como palestrante em encontros sobre as literaturas africanas de língua portuguesa promovidos por universidades e casas de cultura.
Seu último romance, Mãe, Materno Mar, revela-se um mergulho profundo na temática angolana, em todos os níveis. Através de seus personagens, da linguagem adotada e da forma como desenvolve suas narrativas conhecemos histórias de lutas, de silenciamento e de violência que marcaram o passado recente de Angola; conhecemos situações e personagens que representam as tradições, as religiosidades e as práticas políticas da atual sociedade angolana. O imaginário do país e todas as implicações que uma longa e turbulenta colonização pode suscitar são trabalhados de forma sensacional nesse romance que, mais que entretenimento, é uma aula sobre a sociedade e a cultura angolanas.
Aguarde, está a chegando a hora.